Apesar de já transcorridas quatro décadas da posse de José Sarney como presidente da República, que consolidou a volta de um regime democrático no país, o Brasil ainda tem dívidas a pagar para com a democracia, é o que pensa o ex-governador do Distrito Federal e ex-senador Cristovam Buarque, que participou ontem do evento Democracia 40 anos: conquistas, dívidas e desafios. O seminário suprapartidário foi organizado pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP) e pelo partido Cidadania, e contou com o apoio do Correio.
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Entre as “dívidas” citadas pelo ex-governador, ainda está o nível alto de corrupção, alinhado ao alto nível de corporativismo estatal. “O Brasil é profundamente dividido em corporações. Temos 90 milhões de processos jurídicos atualmente, e isso é fruto de um corporativismo”, considerou.
Também mencionou a questão do Bolsa Família, criado durante o primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e que, segundo Cristovam, deveria ter um prazo para terminar. “Ainda não temos uma estratégia para diminuir a pobreza do Brasil. Não temos uma estratégia para dizer que daqui a 20 anos vamos acabar com o Bolsa Família no Brasil”, acrescentou o político.
Diante disso, o ex-governador concluiu a exposição durante o evento levantando uma reflexão sobre a importância da educação básica no país, que, segundo ele, vem sendo relativizada nos últimos anos. Acrescentou que o futuro do planeta depende, principalmente, das novas gerações. “A solução para o equilíbrio ecológico está nas crianças, que precisam de um grande programa de conscientização ecológica. Criar um grande programa de educação, com toda a escola, para a preocupação do equilíbrio ecológico, da sustentabilidade”, frisou.
Na abertura do evento, o ex-deputado e presidente do Cidadania, Comte Bittencourt, afirmou que o encontro tem a importância de relembrar um momento histórico com a posse de José Sarney como presidente, após a morte de Tancredo Neves. “Portanto, decidimos registrar esses 40 anos da redemocratização brasileira com a posse novamente de um presidente civil”, afirmou o ex-deputado.
Comte Bittencourt, presidente do Cidadania: momento histórico
Bittencourt exaltou o papel do ex-presidente José Sarney no processo da redemocratização e de garantir uma nova Carta Magna. “Todos esses constituintes devolveram ao Brasil, com a posse (Sarney), aquilo que é mais caro para o cidadão: a sua liberdade, os seus direitos civis, seu direito de exercer plenamente a sua cidadania”, disse.
O ex-deputado também não deixou de lembrar do filme Ainda estou aqui, de Walter Salles, e fez uma conexão com a história recente e passada do país. “E não é apenas Ainda estou aqui que o Brasil comemora, belo filme de Walter Salles, todos nós ainda estamos aqui, em defesa da democracia, das instituições, em defesa da cidadania”, concluiu.
O presidente do Correio Braziliense, Guilherme Machado, também exaltou a coragem de José Sarney e Tancredo Neves ao lutarem pela retomada da democracia no país. “Estamos aqui para celebrar os 40 anos da redemocratização do Brasil, para homenagear todos aqueles que trabalharam incessantemente para encerrar um regime de autoritarismo e retomar a constituição de um país mais moderno, mais inclusivo, mais tolerante, mais democrático”, destacou.
Guilherme Machado (D), presidente do Correio, ao lado de Sarney
Machado também relembrou o triste episódio de 8 de janeiro de 2023, no qual considerou “um dos episódios mais sombrios da nossa história”. “Com paus, pedras e bombas, agrediram violentamente os símbolos que representam o Estado Democrático de Direito. Como cidadão brasileiro, espero, sinceramente, que aquelas cenas nunca mais se repitam na capital da República ou em qualquer unidade do país”, disse.
O jornalista Luiz Carlos Azedo, colunista do Correio, destacou que o papel da imprensa foi resgatado nos tempos atuais, devido às complexidades das novas tecnologias e o uso de inteligência artificial para produção de notícias falsas. “Hoje qualquer cidadão com um celular registra acontecimentos importantes em tempo real, ao mesmo tempo que é um resultado da democratização do acesso à tecnologia e informação”, levantou.
“Mas também é capaz de produzir informações nas redes sociais como se tivessem existido, é um elemento que coloca em xeque as relações pessoais e as instituições e resgata o papel da imprensa na democracia para filtrar o que é ou não verdade”, acrescentou o jornalista. Para Azedo, a sociedade brasileira vive uma guerra na informação, e isso é um ingrediente novo na democracia. “Alguma coisa precisa ser feita para evitar que isso nos leve nas águas turbulentas da crise institucional”, destacou.
O ex-ministro da Defesa e ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Raul Jungmann considera que os representantes do poder civil devem assumir o compromisso de estabelecer o rumo das Forças Armadas. Mencionando o 8 de janeiro, como um marco de distensão entre os militares e as forças políticas, o ex-ministro disse que é preciso ouvir os apelos dos representantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica para construir um discurso coeso e democrático entre os poderes.
“Se nós queremos, de fato, contar com Forças Armadas plenamente democráticas, nós temos que dar um rumo a elas”, disse Jungmann, que ainda criticou a ausência de uma nova política estratégica nacional de defesa – a última foi aprovada em 2012 – e que o momento atual exige uma maior atenção do poder civil sobre a atuação das Forças Armadas.
O advogado e professor de direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Marco Marrafon acredita que a vigilância na democracia é sempre necessária, pois, segundo ele, “o cão do fascismo está sempre no cio buscando o seu lugar”.
Diante disso, o advogado considera que há uma crise geral no atual sistema político brasileiro, que passaria por uma excessiva politização do poder Judiciário. “Quando juízes viram políticos, nós não temos juízes e não temos Estado de Direito”, argumenta, Além disso, também se dá por uma crise de eficácia e efetividade do poder Executivo e de uma “degradação institucional” do poder Legislativo.
O historiador Alberto Aggio avalia que essa crise não é apenas institucional, mas também dos sujeitos políticos e democráticos do país. “Precisamos entender e difundir o que nós fizemos, garantir que essa democracia se sustente pelo sentido que ela deu à história do Brasil”. O desafio agora, portanto, é voltar a reflexão para o que queremos a partir daqui. “Eu saio desse evento levando no meu coração e na minha cabeça que a nossa ambição é transformar o mundo pela via da democracia”, comentou.
Já o cientista político norte-americano Mark Lilla, que traz o exemplo atual dos Estados Unidos, avalia que o cenário não é positivo para a democracia liberal no mundo e, principalmente, no seu país. Para o professor, estudioso sobre o tema, a primeira eleição de Donald Trump, em 2016, marcou o fim de uma era que durava desde a Segunda Guerra Mundial. “O conservadorismo na América fez um vácuo político. Enquanto a direita se moveu para a direita, os eleitores da esquerda se moveram para a esquerda e isso só alienou mais eles”, sustentou o cientista político.